terça-feira, 4 de janeiro de 2022


 «Onde é a nossa casa?»: Uma pergunta e cinco poemas de Tolentino Mendonça

Onde é a nossa casa?


Acho que foi Albert Camus que disse que a questão mais premente do nosso tempo é cada homem descobrir onde é a sua casa. Aparentemente é uma ideia estranha, pois a maior parte de nós não tem que se perguntar para onde deve voltar ao crepúsculo. Dia a dia há uma rota que voltamos a trilhar sem especiais hesitações, entre a fadiga e a esperança, cruzando as paredes do tempo: esse é o caminho para nossa casa. Cada um cumpre, mesmo sem especial reflexão, trajetórias e rituais que são seus: a estrada que escolhe para regressar (sempre a mesma, sempre a mudar…); a forma familiar que tem diariamente de rodar a chave; o modo (mais lento, mais repentino) de abrir para o que ali habita; aquela fração de segundo, absolutamente impressiva, antes da primeira palavra, em que a casa inteira parece que vem ao nosso encontro, ofegante ou em puro repouso.


Que quereria dizer Camus quando escreveu: «cada homem tem de descobrir a sua casa»? Muitas vezes, perante as questões fundamentais e o embaraço de não encontrarmos imediatamente para elas respostas conclusivas, a própria atualidade vem em nosso socorro, mostrando como a vida é sempre mais simples que as deferências e os reenvios com que a abordamos. Por vezes basta ver, apenas. Basta-nos tomar um exemplo, tocar uma única entre os milhões de imagens que processam o presente, acolher a breve chama de uma história para que o longo corredor até ao sentido se ilumine.


Que quereria dizer Camus quando escreveu: «cada homem tem de descobrir a sua casa»? Penso que a frase longa esconde este repto mais essencial: cada pessoa não tem apenas a tarefa de descobrir uma habitação. Cada pessoa tem o irrecusável dever de descobrir-se, vivendo com paixão e sabedoria a construção de si, esse processo que, por definição, está em aberto e que ao longo da existência se vai efetivando. Nós somos a nossa casa. E poder dizer isso, com simplicidade e verdade, equivale a perpetuar aquilo que Albert Camus também escreveu: «no meio de um inverno, finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível».


 A casa onde às vezes regresso


A casa onde às vezes regresso é tão distante

da que deixei pela manhã

no mundo

a água tomou o lugar de tudo

reúno baldes, estes vasos guardados

mas chove sem parar há muitos anos


Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai

uma viagem se deu

entre as mãos e o furor

uma viagem se deu: a noite abate-se fechada

sobre o corpo


Tivesse ainda tempo e entregava-te

o coração



A casa


Esta casa é a tua casa

quanto ao que permanece

nem sei que dizer

tanto me feriu a

insignificância do mundo

a relativa veracidade concedida aos lírios

minhas habilidades inexperientes


a obscuridade brilha para lá

da própria enseada


 


As casas


As casas habitadas são belas

se parecem ainda uma casa vazia

Sem a pretensão de ocupá-las

tornam-se ténues disposições

os sinais da nossa presença:

um livro

a roupa que chegou da lavandaria

por arrumar em cima da cama

o modo com toda a tarde a luz

entregue ao seu silêncio


Em certos dias, sem sabermos porquê

sentimo-nos estranhamento perto

daquelas coisas que buscamos muito

e continuam, no entanto, perdidas

dentro da nossa casa


 


Sintra, casa do parque


Imaginamos lugares estritos

para o sublime que vem afinal

depositar-se à nossa soleira

trazido pelas folhas

antes e depois da passagem


Os dias são um prólogo se uma pessoa caminha

até que uma verdade lhe seja revelada



[Não somos a casa]


Não somos a casa

somos a montanha

e o relento



Textos: José Tolentino Mendonça

Fontes: Texto: “O hipopótamo de Deus” (Paulinas); “A noite abre meus olhos” (Assírio & Alvim)

Sem comentários:

Enviar um comentário