«Onde é a nossa casa?»: Uma pergunta e cinco poemas de Tolentino Mendonça
Onde é a nossa casa?
Acho que foi Albert Camus que disse que a questão mais premente do nosso tempo é cada homem descobrir onde é a sua casa. Aparentemente é uma ideia estranha, pois a maior parte de nós não tem que se perguntar para onde deve voltar ao crepúsculo. Dia a dia há uma rota que voltamos a trilhar sem especiais hesitações, entre a fadiga e a esperança, cruzando as paredes do tempo: esse é o caminho para nossa casa. Cada um cumpre, mesmo sem especial reflexão, trajetórias e rituais que são seus: a estrada que escolhe para regressar (sempre a mesma, sempre a mudar…); a forma familiar que tem diariamente de rodar a chave; o modo (mais lento, mais repentino) de abrir para o que ali habita; aquela fração de segundo, absolutamente impressiva, antes da primeira palavra, em que a casa inteira parece que vem ao nosso encontro, ofegante ou em puro repouso.
Que quereria dizer Camus quando escreveu: «cada homem tem de descobrir a sua casa»? Muitas vezes, perante as questões fundamentais e o embaraço de não encontrarmos imediatamente para elas respostas conclusivas, a própria atualidade vem em nosso socorro, mostrando como a vida é sempre mais simples que as deferências e os reenvios com que a abordamos. Por vezes basta ver, apenas. Basta-nos tomar um exemplo, tocar uma única entre os milhões de imagens que processam o presente, acolher a breve chama de uma história para que o longo corredor até ao sentido se ilumine.
Que quereria dizer Camus quando escreveu: «cada homem tem de descobrir a sua casa»? Penso que a frase longa esconde este repto mais essencial: cada pessoa não tem apenas a tarefa de descobrir uma habitação. Cada pessoa tem o irrecusável dever de descobrir-se, vivendo com paixão e sabedoria a construção de si, esse processo que, por definição, está em aberto e que ao longo da existência se vai efetivando. Nós somos a nossa casa. E poder dizer isso, com simplicidade e verdade, equivale a perpetuar aquilo que Albert Camus também escreveu: «no meio de um inverno, finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível».
A casa onde às vezes regresso
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
A casa
Esta casa é a tua casa
quanto ao que permanece
nem sei que dizer
tanto me feriu a
insignificância do mundo
a relativa veracidade concedida aos lírios
minhas habilidades inexperientes
a obscuridade brilha para lá
da própria enseada
As casas
As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
Sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo com toda a tarde a luz
entregue ao seu silêncio
Em certos dias, sem sabermos porquê
sentimo-nos estranhamento perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa
Sintra, casa do parque
Imaginamos lugares estritos
para o sublime que vem afinal
depositar-se à nossa soleira
trazido pelas folhas
antes e depois da passagem
Os dias são um prólogo se uma pessoa caminha
até que uma verdade lhe seja revelada
[Não somos a casa]
Não somos a casa
somos a montanha
e o relento
Textos: José Tolentino Mendonça
Fontes: Texto: “O hipopótamo de Deus” (Paulinas); “A noite abre meus olhos” (Assírio & Alvim)
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