“São Pedro é um velhinho
Homem de muito juízo
Foi a quem Deus entregou
As chaves do Paraíso.”
Chávena e pires
Porcelana decorada a
azul, vermelho-ferro e ouro
China, dinastia Qing, reinado Qianlong (1736-1795), c. 1790
Uma pausa para o chá? Numa chávena onde o AZUL impacta tanto quanto o ouro, só como deve ser, com etiqueta e requinte!
Chávena e pires de chá em porcelana branca pintada a azul sob vidrado e esmalte vermelho-ferro e ouro sobre vidrado. Chávena de paredes arredondadas, asa em “C” com pequena saliência no topo para apoio do polegar e pires de formato circular e covo. Ambos apresentam idêntica decoração, marcada por barra larga, circundando as bordas entre filetes azuis, com motivo encanastrado dourado servindo de fundo aos raminhos de flores variadas, azuis. A barra é rematada inferiormente por um alinhamento de motivos em “C”, dourados, entremeado de pontilhados azuis. A orla no interior da chávena e a caldeira do pires apresentam a mesma cercadura composta por filete vermelho-ferro entrelaçado com meandro de folhas azuis e douradas, alternadas e pontilhados também a dourado. Um singelo ramo florido azul, contornado a dourado, ocupa o centro do pires e a parede exterior da chávena, frente à asa. Estas duas peças integram um serviço de chá, de que restam 11 chávenas, 13 pires e duas taças, de dimensões ligeiramente inferiores às das chávenas.
Os serviços de chá tornam-se populares a partir do final do século 17, quando esta bebida, de início consumida apenas para fins medicinais, passa a ser apreciada e se populariza na Europa. Os portugueses serão os primeiros a conhecer o chá, no século 16, mas o seu comércio para o Ocidente foi empreendido pelos holandeses, cuja primeira remessa remonta a 1606 e que a partir de 1637 começa a ser transportando com regularidade. Centrado em Amsterdão o mercado do chá, rapidamente se difunde pela França, Alemanha e a Inglaterra, onde na segunda metade do século 17 era servido nas “coffee-houses”, em salas à parte destinadas às senhoras. De 1730 a 1760 decorre o período áureo deste comércio, na altura dominado pelos ingleses e, naturalmente, aumenta também a procura e encomenda dos serviços de chá em porcelana para servir e degustar a bebida.
A porcelana revela-se o material mais adequado para o consumo das novas bebidas quentes, como o chá, o café e o chocolate, pelas suas propriedades de má condução do calor, porque não interfere com o sabor do conteúdo, é de fácil limpeza e, ainda, pela sua beleza e brilho convive bem com as baixelas de prata. Conjuntos em porcelana chegam mesmo a substituir baixelas, mandadas fundir por alguns monarcas europeus em tempos de guerra. A adoção de serviços de porcelana pelas casas reais, leva à generalização do seu uso pela nobreza e burguesia endinheirada e na encomenda dos grandes serviços de mesa, surgem integrados os conjuntos para chá, café e chocolate, se bem que estes também podiam ser encomendados em separado. Um serviço de chá compreendia normalmente o bule, o frasco de chá, a leiteira, o açucareiro com tampa, a taça para resíduos, pequenas travessas para o bule para a colher, as chávenas de chá e respetivos pires e muitas vezes chávenas de café, mas neste caso, era habitual um só lote de pires servir para os dois tipos de chávenas.
Inicialmente as taças de chá exportadas para a Europa eram idênticas às usadas na China e serviam para diferentes bebidas quentes, nomeadamente para o café. Depois, aos poucos, as formas vão-se diferenciando, adaptando-se às diferentes características de cada bebida. Assim tal como na China e no Japão, de início essas taças não tinham pires associados, a produção de chávenas com pires associados generalizou-se, apenas na porcelana destinada à exportação e por influência turca ou islâmica. Entre 1660 e 1663, os pires constavam apenas esporadicamente e avulsos nas listas de carregamentos de porcelana japonesa com destino à Holanda, mas a partir de 1680 passam a surgir regularmente associados a chávenas a condizer. Não é certo quando as taças de chá passaram a ser substituídas por chávenas com asa, elas começam a ser comuns nos fornecimentos chineses do século 18, muito embora ambas as tipologias tenham coexistido durante algum tempo. Também é notório o aumento gradual do tamanho das chávenas, resultante provavelmente do hábito europeu de adicionar água ou leite ao chá.
Nossa Senhora com o Menino Jesus
Madeira policromada, dourada e marfim
Século 18 d.C.
Índia Portuguesa
Não se encontra identificada a invocação desta imagem da Virgem com o Menino, resgatando uma alminha do purgatório, com um anjo ofertante. O culto das alminhas disseminou-se em Portugal maioritariamente a partir do século 17 e incide na crença no purgatório, nas almas que aí se encontram e que anseiam as orações dos vivos e a intercessão dos Santos, para encurtar o seu tempo de padecimento. A Virgem Maria é a sua principal intercessora junto de Deus e é assim que surge figurada, bem expressiva, protetora, cheia de graça, envolta num manto que só podia ser AZUL, a cor que lhe estava associada.
Nossa Senhora com o seu Filho, sentado sobre o braço esquerdo, estende a mão para a alma que, prefigurada numa criança, se eleva das chamas; ajoelhado a seus pés um pequeno anjo apresenta-lhe um cesto de oferendas. As figurinhas da criança e do anjo que se distinguem por uma ser alada, estão despidas e parcialmente envoltas por uma faixa. Maria veste túnica branca, guarnecida com ramalhetes de rosas vermelhas entre folhas verdes, sob um amplo manto azul que, apanhado sob os braços, lhe desce dos ombros até aos pés. Os cabelos castanhos estão soltos, semi-encobertos por um véu curto esvoaçante, de um tom amarelo-esverdeado. Todas as suas vestes, bem como os sapatos verdes que calça, estão enriquecidos com motivos pintados a dourado. Apresenta-se de pé, sobre uma nuvem, de cujos enrolamentos emergem três cabeças de querubins, um com asas vermelhas e dois azuis, e donde emanam à esquerda labaredas vermelhas. O Menino está nu, em atitude de “Salvador do Mundo”, com a mão direita erguida em sinal de bênção e a outra a segurar a orbe, ou o globo terrestre. O conjunto assenta sobre uma base escalonada, ondeada, pintada com efeitos marmoreados em tons de azul e branco. A peça é esculpida em madeira, à exceção do rosto e mãos de Nossa Senhora e das três figuras que representam o Menino, o anjo e a alminha, que são em marfim, com os cabelos, olhos e lábios pintados.
O marfim é apreciado desde a Antiguidade por ser raro, pela sua origem em animais com fortes conotações sobrenaturais e religiosas, como o elefante, o hipopótamo ou o narval, mas também pelas suas qualidades estéticas. A brancura, brilho suave e maciez são atributos que associados à plasticidade, permitem que seja trabalhado das mais diversas formas. Esculpido, gravado, tingido, pintado, dourado ou incrustado era utilizado na produção de objetos de luxo, utilitários, decorativos, religiosos ou em mobiliário. O melhor marfim era o obtido dos dentes dos elefantes africanos, posteriormente exportado para a Europa, onde na Idade Média e Renascença, se criaram importantes oficinas na França, Inglaterra, Itália e Alemanha. Em Portugal rareiam os exemplares anteriores ao século 16 e à nossa expansão por África e pela Ásia, regiões exportadoras, com larga tradição do trabalho em marfim. A partir dessa altura, a produção indo-portuguesa da costa ocidental sul da Índia, designadamente de Goa e Cochim, territórios de colonização mais antiga e enraizada, será claramente dominante em relação à de outras regiões. Em particular a da costa ocidental norte da Índia, através de Damão e Diu (mogol), do Ceilão atual Sri-Lanka (cíngalo-portuguesa), da China (sino-portuguesa) e do Japão (nipo-portuguesa).
Foi a missionação portuguesa no Oriente que originou a necessidade de esculturas religiosas de produção local, em materiais indígenas, como as madeiras exóticas e o marfim, destinadas ao culto religioso nas colónias cristãs estabelecidas. Não obstante algumas determinações proibitivas do fabrico de imagens sacras por parte de não crentes, tornou-se fundamental contornar essa questão uma vez que eram escassos os exemplares recebidos da metrópole. Aos poucos essa produção desenvolve-se e torna-se objeto de exportação, acompanhando uma tendência que se generaliza de colecionar peças exóticas e preciosas, ainda mais quando se tratavam de objetos devocionais destinados ao culto privado. Esta imagem, cuja figuração e movimentados panejamentos se aproximam dos modelos barrocos nacionais, seria com certeza destinada ao mercado português.
Gomis (par)
Porcelana branca pintada a azul-cobalto sob vidrado
China, dinastia Qing, reinado Kangxi, 1662-1722
Elegantes, delicadas, de matéria imaculada e AZUL deslumbrante, estas peças seriam o máximo do requinte nas mesas europeias dos inícios do século 18.
Par de pequenos gomis em porcelana branca, pintada a azul sob vidrado. Apresentam o corpo em forma de pera, gargalo alto, cintado e longo bico encurvado. As bases, com ligeiro relevo, estão pintadas com pétalas de lótus imbricadas, os bojos são gomados, decorados com ramagens de flores variadas e os ombros preenchidos com uma cercadura de óvulos seguida de outra com fita em ziguezague, formando triângulos. Os gargalos exibem hastes floridas dispostas em bandas espiraladas e os bicos, que arrancam de uma cabeça de monstro, estão pintados com motivos de nuvens dispersas. Não têm asa, mas originalmente teriam uma tampa associada.
Por definição gomis são jarros bojudos e de boca estreita destinados a conter água para lavagem das mãos e por esse motivo estão muitas vezes associados a bacias que recolhem a água por eles vertida. Apesar do seu formato de gomil, é pouco provável que este conjunto de pequenas dimensões, não ultrapassando os 14,5 centímetros de altura, se destinasse a abluções, deveria antes assumir a função das galhetas usadas em serviços religiosos, ou em uso doméstico, para servir azeite e vinagre às refeições, à maneira dos atuais galheteiros.
As galhetas usadas nas missas eram normalmente encomendadas aos pares e destinavam-se à água e ao vinho que se misturam no cálice durante o cerimonial litúrgico. Por outro lado, nas mesas a sua existência está documentada desde cerca de 1664. Os conjuntos para condimentos, cuja origem está associada aos franceses, poderiam incluir para além do prato de suporte, 2, 4 ou 6 peças, entre recipientes para azeite e vinagre, outros destinados à mostarda, bem como polvilhadores de sal e pimenta, que nesse caso não apresentavam bico, mas tampas perfuradas, fixas com fechos adaptados. Em alguns casos incluem também um açucareiro. No Oriente os primeiros exemplares foram encomendados pelos holandeses ao Japão, que enviavam modelos em faiança de Delft para serem copiados. Existem galhetas dessa origem, marcadas com as iniciais O para “olie” (azeite), A para “azijn” (vinagre), o “S” ou “Z” para molho soja ou zoja e por vezes ainda L “limoen” (limão), condimento usado à mesa na Holanda.
Na China os mais antigos conjuntos destinados à Europa datam do final do século 17, provavelmente de um período posterior a 1683, altura em que se intensificou o comércio da porcelana e cresceu a procura de formas ocidentais, de modo que vários fornos de Zingdzhen, o principal centro de fabrico no sul da China, se especializaram na produção para exportação, a dita porcelana de encomenda. A maioria dos conjuntos para especiarias ou condimentos foi produzida entre 1730 e 1764, sendo raros os que se mantêm completos até aos dias de hoje. Talvez porque não foram objeto de muitas encomendas por serem considerados demasiado caros, ou simplesmente porque se partiram, ou dispersaram ao longo dos anos e sucessivas partilhas.
O ÍNDIGO provém das folhas de um arbusto, o indigueiro, que era usado para tingir fibras têxteis desde o Neolítico. Originário da Ásia e da África, foi desde a antiguidade objeto de exportação, nomeadamente o que provinha das regiões da Índia era encaminhado para o Médio Oriente. Aí atingia preços muito elevados, pelo que o seu uso era reservado aos tecidos de qualidade. O índigo foi durante muito tempo desconhecido no Ocidente, onde o azul nem era muito apreciado.
O azul índigo, cujo custo será comparável ao do ouro, ganha importância na Europa a partir do século 12 quando, associado à cor dos céus e à divina presença, serve de fundo às imagens sacras, em iluminuras e vitrais; identificado com a Virgem através do seu manto, convertido aos mais intensos e luminosos tons de azul, ganha popularidade ao mesmo tempo que espelha a crescente difusão do culto de Maria; é ainda, em homenagem à Rainha dos Céus e com a flor de lis - outro atributo mariano - a cor escolhida para constar no brasão dos reis de França, e ao ascender a cor real acabará amplamente promovida através da heráldica.
Na pintura o pigmento azul é extraído do lápis-lazúli, pedra semipreciosa, muito dura, de um tom de azul profundo semeado de veios brancos e dourados. Tal como o índigo também provém do Oriente, nomeadamente da Sibéria, China, Tibete, Irão e Afeganistão, sendo estes dois últimos países os principais fornecedores do Ocidente antigo e medieval. A sua origem distante e a dificuldade em extraí-la, devido à sua dureza, tornavam este pigmento extremamente caro, sobretudo porque ainda tinha de passar por complexas e morosas operações de trituração e purificação antes de poder ser usado como cor. O pigmento produz uma grande variedade de belos e vibrantes tons de azul, resistentes à luz, mas com pouco poder cobridor. Por isso e pelo seu preço elevado é utilizado preferencialmente em pequenas superfícies, sobretudo em iluminuras no período medieval, ou nas zonas das imagens, em escultura e na pintura, que se pretendam valorizar.
A azurite é o pigmento azul mais usado na Antiguidade Clássica e no mundo medieval, é de origem mineral, mais acessível, mas também mais instável, cujos tons, tendencialmente mais esverdeados ou pretos, são menos belos e variam consoante o grau de trituração.
A nova moda de azul é favorecida pelos progressos das técnicas de tingimento e pelo desenvolvimento do pastel dos tintureiros, uma planta que nasce espontaneamente em várias regiões da Europa. Tornada mais acessível, a ascensão do azul continua favorecida a partir do século 14, pelo desenvolvimento de uma corrente moralista defensora da modéstia, contra a ostentação e limitadora do uso de uma série de cores vivas, com fortes e antigas conotações. O azul sai beneficiado, pela sua isenção, por se identificar com a honestidade, sobriedade, com o céu e o espírito. O seculo 18 marcará o seu verdadeiro triunfo no Ocidente, com a liberalização e generalização do uso do índigo e após a descoberta de novos pigmentos artificiais utilizados na pintura e na tinturaria. Do azul romântico e melancólico, ao azul político e revolucionário, usado pelos soldados da Guarda Nacional parisiense e adotado pelas milícias apoiantes da Revolução, esta é a cor dominante do vestuário do século das luzes, só cedendo lugar ao preto no século 19. Depois, a partir de 1910, a tendência volta para o azul, cujo tom marinho conquista a generalidade dos uniformes, alastrando-se ao vestuário civil, alcança finalmente a primazia, revelando-se desde a 1ª Guerra Mundial a cor preferida do mundo Ocidental.
Francisco Maya (Lisboa, 1915-Funchal, 1993)
Óleo sobre platex
Portugal, Madeira, 1953-1978
Haverá azul mais belo que o do oceano sob um céu ensolarado? Dificilmente algum tom se lhe compara e não basta ser artista, é preciso amar verdadeiramente o mar para captar essa beleza. Paisagem da costa norte da ilha da Madeira, com o mar em grande plano, calmo, luminoso, de um azul inebriante, desdobrado em tonalidades várias que refletem a ondulação suave. Navegando próximo, um barco a remos com três ocupantes e, ao fundo, a linha do horizonte esbate-se para se tornar céu, num tom mais pálido, manchado de nuvens esparsas, etéreas e esbranquiçadas. À direita ergue-se a encosta de contorno irregular, abrupto, que orienta o olhar no sentido vertical, conduzindo-o até ao longe por uma paleta de tons subtis que começa nos castanhos escuros, passa para os verdes mais suaves, segue pelos lilases que se esbatem em nuances azuis, tal como a neblina que caracteriza a distância.
Estes deslumbrantes efeitos são conseguidos através da manipulação hábil da espátula que deixa rastos de distintas texturas. Subtis volumetrias são criadas através da sábia aplicação de camadas de tinta espessa, alternadas com outras mais planas, podendo ainda ser raspadas para deixar à vista diferentes níveis de cor. Esta técnica é bem observável, no reflexo das rochas e da embarcação, que à esquerda equilibra a composição, dando a ilusão de movimento e transparência da água, onde os diferentes tons de azul, preto e branco espelham o perfeito domínio de tintas e espátula. No canto inferior direito a assinatura de Francisco Maya (F. Maya), o pintor que se apropriou do mar para impactar e distinguir a sua pintura.
Francisco José Peile da Costa Maya, filho do famoso escultor Delfim Maya (Porto, 1886-Lisboa, 1978), nasceu em Lisboa, em 1915, frequentou as aulas de desenho e pintura na Escola de Belas Artes, de Lisboa, onde obteve o diploma de autodidata. Viveu entre Cascais e as ilhas da Madeira e do Porto Santo, com passagens por Paris, Espanha, África do Sul, Moçambique e Angola, onde expôs os seus trabalhos. Pintou figuras humanas, temas sacros, vistas diversas, mas o mar é o seu tema recorrente em paisagens costeiras, marinhas, enquadrando barcos e pescadores. Não se fixa em detalhes, porque a sua pintura não é para ser vista ao perto mas à distância. Usa tintas de cores diferentes que dispõe em camadas, não as mistura na paleta, mas diretamente sobre o suporte, originando outros tons, diferentes formas, para dar vida e criar uma imagem. E é no mar que revela um talento inato, uma especial sensibilidade para captar a inquietude e a vibração das águas sempre em movimento.
Retrato de Maria Manuela de Freitas
Guache e carvão sobre papel kraft
Rafaello Busoni (Berlim, 1900 – Nova Iorque, 1962)
Portugal, Madeira, 1935
Quando o acessório faz a diferença produz o efeito deste lenço azul, mostrando que um único apontamento de cor é suficiente para animar e valorizar o conjunto. Retrato de corpo inteiro de Maria Manuela de Freitas que se apresenta de pé, numa pose descontraída, com a mão direita na cintura e o braço esquerdo descaído ao longo do corpo. Veste calças pretas, blusa branca, de mangas compridas e colarinho desabotoado, com um lenço descaído sobre os ombros, preso ao lado com um nó. De rosto impassível, olhando ligeiramente à direita, apresenta o cabelo escuro, levemente ondulado, cortado à altura do queixo, bem ao gosto dos anos 30. Maria Manuela, carinhosamente apelidada de Necas, era a filha única do Dr. Frederico de Freitas e da sua mulher, a Senhora D. Marieta Larica do Nascimento. Nascida a 28 de outubro de 1920, a jovem teria cerca de 15 anos quando foi retratada, por Rafaello Busoni, em 1935. A atualidade do corte de cabelo e do vestuário, incomuns numa época e num meio onde poucas se aventurariam a usar calças, demostram bem tratar-se de uma rapariga moderna, segura de si, proveniente de uma família suficientemente liberal e aberta que lhe permitia acompanhar as últimas tendências da moda. De facto, deveria ser particularmente cuidada a sua educação e estreita a relação entre Maria Manuela e os pais, como tão devastadora viria a ser a sua morte, aos 19 anos, em abril de 1940.
A sua presença e memória será uma constante na Casa da Calçada, para onde o Dr. Frederico de Freitas se muda, com a família, no ano seguinte de 1941. Inúmeros outros retratos de Maria Manuela, em pintura, desenho e fotografia, testemunham a sua feliz, mas demasiado curta vida e integram hoje a coleção da Casa-Museu Frederico de Freitas. Este retrato é particularmente interessante pela expressão livre do traço, delineado a carvão, e das pinceladas soltas a guache nas cores preto, branco, rosa e azul. Essa mesma desenvoltura deixa à vista o fundo texturado e pardo do papel kraft, fazendo supor tratar-se de um apontamento rápido, uma possível atenção em agradecimento de alguma amabilidade. O Dr. Frederico de Freitas era conhecido pela sua proximidade e proteção aos artistas, e naturalmente terá apoiado Rafaello Busoni durante a sua permanência na Ilha.
Busoni chegou à Madeira, acompanhado pela mulher e filha, em janeiro de 1935, a bordo do paquete "Arlanz", na altura com 34 anos de idade. Realizou uma exposição de pintura de paisagens da Madeira, no Casino Vitória, inaugurada em 28 de março de 1935, sendo então divulgados pela imprensa local alguns dados biográficos e propagada a sua aptidão para o retrato. Nesse mesmo ano retratou várias figuras da elite funchalense, principalmente feminina.
Rafaello Busoni, nasceu em Berlim em 1900, filho de Ferruccio Busoni, músico italiano famoso, e de Gerda Sjöstrand, de nacionalidade sueca. Fez formação artística na Suíça, trabalhou em Paris e em Berlim, como ilustrador. Em janeiro de 1935 viaja, com a sua mulher Hannah e a filha do primeiro casamento, para a Madeira, onde se mantem durante cerca de um ano. Em 1936, com o início da Guerra Civil espanhola, a família regressa a Berlim, mas as origens judias da mulher determinam a partida para a Suécia, no início de 1939, e alguns meses mais tarde o embarque definitivo para Nova Iorque. Aí permaneceu até à sua morte, em 1962, exercendo a profissão de pintor e sobretudo de ilustrador de clássicos da literatura juvenil e de aventuras.
Faiança
John Moyr Smith (1839-1912),
Minton China Works, Inglaterra, ca. 1876
Quem diria que esta personagem da Grécia antiga destacada sobre um cativante fundo azul, representava um toque de modernidade nos interiores vitorianos do século 19. Azulejo estampado com figura clássica tocando pandeireta, nas cores azul ciano, castanho e bege sobre branco. Apresenta ao centro, no medalhão circular, um homem delineado a castanho sobre branco, de cabelos e barbas encaracolados, coroa de folhas na cabeça, trajando túnica de gola trabalhada e envolto num manto, com motivos em espiral e orla de grega. A figura recorta-se sobre o fundo azul com ramagens floridas brancas, sentada entre artefactos gregos, segurando a pandeireta e com uma vara de ponta lanceolada e fita amarrada, apoiada na perna. Enquadra este medalhão uma moldura de fundo bege sublinhada nas bordas por linhas castanhas que nas esquinas e aos lados formam motivos estilizados. A assinatura do autor “Moyr Smith” surge à esquerda, sob o vaso, junto ao friso geométrico.
Este exemplar pertence à série intitulada “figuras clássicas tocando instrumentos musicais”, formada por 8 azulejos distintos, correspondendo a cada um, uma personagem e um instrumento musical diferente, designadamente: “Tambourine” (pandeireta), “Sistrum” (sistro), “Lute” (alaúde), “Pandean Pipes” (flauta de pã), “Double Flute” (flauta dupla), “Keltic Harp” (harpa céltica), “Cymbals” (címbalos) e Kithara (cítara). Foi criada cerca de 1876, por John Moyr Smith para a “Minton China Works”. O conjunto podia ser completado por um friso próprio, coordenado, de motivos vegetais estilizados. Foi uma das séries mais difundidas, produzida em pelo menos 4 cores diferentes, cujos azulejos foram aplicados em diversos tipos de objetos, como cadeiras, fogões de sala em ferro fundido, lavatórios, floreiras e outros. A sua popularidade foi tal que o desenho acabou por ser reproduzido noutros suportes como o vidro pintado ou o couro gravado usado em mobiliário.
John Moyr Smith, escocês, nasceu em Glasgow, em 1839, iniciou a sua formação como arquiteto, frequentou a Escola de Artes na sua cidade natal e mudou-se para Manchester, em 1864, como assistente do arquiteto Alfred Darbyshire (1839-1908). Dois anos mais tarde transfere-se para Londres, onde desenvolve atividade profissional no âmbito das Artes Decorativas, como ilustrador, decorador de interiores, editor e designer de mobiliário, cerâmica, vitrais, objetos de metal e papel de parede, colaborando com as mais diversas empresas. A maior contribuição de Moyr Smith para a “Minton China Works”, estabelecida em Stoke-on-Trent, Staffordshire, foi na produção de azulejos figurativos estampados. Revelou-se um aliado de sucesso e a sua primeira colaboração aconteceu em 1872, com a série “Old Testament” (Antigo Testamento), prolongando-se a ligação por cerca de 20 anos, entre 1872 e 1892, através da criação de mais de 18 novas séries, correspondendo a cada uma, entre 8 a 24 desenhos diferentes. Os seus azulejos eram maioritariamente figurativos de inspiração revivalista, nomeadamente clássica e medieval, abordando temáticas variadas, como a mitologia, figuras alegóricas, grandes autores do passado, história da Inglaterra, atividades agrícolas e industriais, contos de fadas, cantigas infantis, temas bíblicos e literários de Shakespeare, Scott James Thomson (1700-1748) ou Sir Walter Scott (1771-1832).
Vários fatores como a evolução técnica, as alterações sociais e da moda determinaram a rápida expansão da indústria cerâmica na Inglaterra da segunda metade do século 19. Nesse âmbito a “Minton” foi sem dúvida uma empresa em destaque, pela sua rápida adaptação às novas tecnologias de produção massiva de azulejos, nomeadamente a calibragem e a estampagem, o que lhe permitiu abastecer uma clientela da classe média cada vez mais vasta, com produtos a preços muito competitivos que associavam a produção artística e industrial. De fato no final do século 19, a grande maioria das casas cuja decoração seguisse a moda, apresentaria azulejos no seu interior, estivessem eles nas paredes, em lareiras, no mobiliário ou em peças decorativas.
Prato
Faiança, decoração estampada “Northern Scenery” John Meir & Son, Inglaterra, 1838-1897
Que tal velejar pelos lagos da Escócia ao jantar? Para tal basta divagar através das cenas representadas no serviço “Northern Scenery”, cuja decoração central se baseia em paisagens de lagos e castelos escoceses.
No início do século 19, verifica-se uma enorme apetência pela literatura de viagens repleta de gravuras de locais exóticos e de paragens longínquas. Ao culto da paisagem e do pitoresco, alia-se na Grã Bretanha um patriotismo crescente de um Império em expansão e, face ao período conturbado das Guerras Napoleónicas e à maior dificuldade em viajar pela Europa, multiplicam-se os livros que retratam e enaltecem a beleza e os monumentos britânicos. Esta tendência é desde logo atentamente acompanhada pela indústria cerâmica, cujos fabricantes lançam para o mercado inúmeros serviços decorados com séries de paisagens. Mantém-se a predominância do azul e branco, atestando ainda a influência da tradicional porcelana chinesa, mas agora a decoração é de temática e gosto genuinamente europeus. Este prato pertence a um serviço de mesa que atesta bem esta moda, cujo período áureo decorreu entre os anos de 1815 e 1840, começando gradualmente a decair a partir de 1842, altura em que é aprovada nova legislação de direitos de autor que decreta a ilegalidade da cópia das ilustrações de livros.
O serviço, que originalmente seria destinado a 12 pessoas, é hoje composto por 75 peças, entre pratos de sopa, rasos, de sobremesa e de pão, terrinas e respetivas conchas, travessas diversas, saladeira, pratos cobertos, prato com pé e molheiras. A série do padrão “Northern Scenery”, baseia-se num conjunto de gravuras, publicadas em Londres, em 1838, no 2º volume de “Scotland Illustrated”, de William Beattie (1793-1875). Neste conjunto foram identificadas 13 panorâmicas diferentes, todas constantes da dita publicação. São elas: “Loch Oich. Invergarry Castle”, “Kilchurn Castle. Loch Awe”, “Loch Lomond”, “Loch Creran with Barcaldine Castle”, “Dunolly Castle near Oban”, “Loch Awe”, “Loch Linnhe Looking South”, “Dunkeld. Perthshire”, “Pass of the Trossachs Loch Katrine”, “Loch Katrine looking towards Ellen’s Isle”, “Loch Leven Looking towards Ballahuish Ferry”, “Loch Achray” e “Loch Lomond [Sth Wst] View”.
Este é um prato raso de formato circular, aba de recorte ondeado, ligeiramente inclinada para o interior, em faiança branca estampada a azul-claro. Apresenta a paisagem “Loch Oich. Invergarry Castle” no fundo da caldeira, envolta por uma cercadura de finos pináculos. Trata-se de uma visão romântica do lago Oich, com montanhas e nuvens ao fundo, barcos a navegar placidamente por entre as margens verdejantes e as ruínas do castelo de Invergarry destacadas à direita. A aba é densamente decorada com ramalhetes de flores inscritos em reservas ondeadas, emolduradas por folhas de acanto e intercaladas por motivos em pinha de orla lobulada com flores, sobre fundo azul florido rematado exteriormente por cercadura de motivos em círculo e triangulares, alternados.
A marca, impressa a azul no reverso das peças, é constituída por um escudo oval, coroado, com o nome da série “Northern Scenery” inscrito e ladeado por leão e unicórnio. Na zona inferior exibe uma decoração floral e a filactera ondulante, com as iniciais do fabricante “J. M.& S.” e o título da vista em itálico, por baixo.
John Meir & Son é uma empresa de Tunstall, em Staffordshire, Inglaterra, originária na John Meir que laborou entre 1812 e 1836, e que a partir de 1837 e até 1897 assume esta nova designação, passando a integrar na sua marca as iniciais J. M. & S. ou I. M. & S. Muito virada para a exportação, dedica-se especialmente à produção de cerâmica estampada, maioritariamente a azul, de inspiração romântica, sendo este padrão dedicado às paisagens da Escócia um dos que mais se popularizou.
Cortejo religioso
Autor desconhecido
Desenho à pena e aguarela sobre papel
Portugal, Madeira, ca. 1800-1830
Desenhe para mais tarde recordar! É este o princípio que sustenta grande parte dos álbuns de desenhos que nos ficaram do século 19. Numa época em que não existia a fotografia o registo de imagem através do pequeno apontamento de desenho era uma forma de ilustrar e conservar memórias de uma viagem. Não se trata aqui de cadernos de esboços ou diários gráficos com finalidades artísticas, mas de registos para uso pessoal ou partilha com um grupo restrito de familiares ou amigos. Os álbuns e os portefólios de aguarelas e desenhos tornam-se uma moda a partir do final do século 18. Podiam ser de um único autor ou reunir trabalhos de diversas autorias, sendo posteriormente organizados e encadernados, passavam depois a integrar as bibliotecas privadas no regresso à terra natal. Serviam como recordações, tal como mais tarde se usaram os álbuns de postais ou de fotografias. Dependendo da sensibilidade e do interesse de cada um, registava-se o pitoresco, o exótico, os costumes locais, aquilo que chamava particularmente a atenção por ser diferente. Um álbum de viagem é sem dúvida um testemunho individual e subjetivo, mas é também um importantíssimo documento iconográfico de aspetos raramente representados de outro modo, que não a escrita.
Este curioso apontamento integra precisamente um álbum desse tipo, com cerca de 40 desenhos relacionados com a Madeira e alguns de outras localidades estrangeiras. Desconhece-se o seu autor e a sua datação aproximada, entre 1800 e 1830, é possível graças à indumentária das personagens urbanas que figuram em determinadas aguarelas. Algumas paisagens, aspetos da vivência local, das habitações, dos trajes populares, dos transportes são os principais assuntos retratados.
Esta cena representa o que parece ser um cortejo fúnebre a passar numa zona central da cidade. Tem como fundo as frentes irregulares dos edifícios, uns térreos, outros de um, dois ou mais pisos, com as suas janelas, varandas ou balcões de madeira e telhados semeados de pedras, para prevenir que as telhas fossem levadas pelo vento. Na rua, pavimentada com grandes pedras roladas, passa o cortejo encabeçado pelos frades que levam os estandartes e o turíbulo fumegante, seguindo-se o esquife do defunto com os seus carregadores e alguns populares. Dois homens, um militar e um civil, de costas e de cabeça descoberta, em sinal de respeito, observam o grupo que passa. Os restantes distribuem-se pela rua, alguns usando o traje tradicional, botas, calção e camisa de linho branca, ou saia listada, lenço e carapuça, como o homem que se carrega ao ombro a vara com dois peixes pendurados, ou a mulher que cata piolhos a uma criança acocorada a seus pés. Os outros conversam ou parecem pedir esmola, indiferentes ao que se passa. É precisamente essa indiferença, o facto dos estandartes se levarem erguidos e as varandas se apresentarem vazias, sem espetadores, que leva a crer se tratar de um funeral e não da procissão do Enterro do Senhor. Ocasião mais solene que com certeza envolveria outro cerimonial, maior devoção e recolhimento por parte da população local. Na realidade até cerca de 1835, os enterramentos tinham lugar dentro dos recintos sagrados das igrejas e capelas, sendo provável que nos casos de menos posses os cortejos seguissem a pé e não houvessem caixões.
A aguarela é o meio ideal para a pintura rápida de um apontamento de passagem. Os pigmentos usados possuem grão fino e podem ter diversas origens, sendo muitos derivados de substâncias minerais e de plantas às quais se juntam um elemento aglutinador solúvel na água e uma matéria para aumentar a sua flexibilidade. As primeiras aguarelas não tinham resistência à luz, mas a partir do século 18, com a adição de corantes químicos, as cores passaram a ter maior durabilidade, tratando-se sempre, de pinturas mais frágeis quando comparadas com outras técnicas. Consoante a quantidade de água e de pigmento misturado, as cores obtidas podem ser suaves ou intensas, devendo iniciar-se a pintura pelas cores mais claras, deixando por pintar as zonas onde se pretende dar a ilusão de luminosidade ou aquelas que se querem brancas, seguindo-se gradualmente para as mais escuras. A transparência é uma das principais características desta técnica. O traço à pena pode ser realizando antes da pintura ou depois, como parece ser este o caso, onde a presença do traço negro é bem notória.
Panorâmica da Cidade do Funchal e da Costa Sul da Ilha da Madeira (…).
Impressão sobre seda
Ca. 1775-1800
O que cativa mesmo o olhar, nesta perspetiva da baía do Funchal, é o tom de AZUL ameno, delicadamente aplicado na seda para evidenciar o céu e o mar. Só num segundo momento somos atraídos pelo vulto sombrio da Ilha e pelos pormenores da pequena cidade, muralhada que se aninha na parte mais plana e baixa da enseada.
Gravura impressa sobre seda representando uma vista do Funchal, tirada a partir do mar. Mostra a cidade espraiada ao longo da enseada, subindo timidamente o anfiteatro dominado pelas imensas montanhas. No litoral Oeste é nítido o suave ondulado do relevo dos Picos da Cruz, do Buxo, dos Barcelos e das Romeiras; a Este a costa é marcada pelas arribas escuras e abruptas. Num plano aproximado, o mar estende-se com as embarcações fundeadas ao largo ou a navegar, umas de chegada e outras de partida.
Esta panorâmica, de autor não identificado, faz parte de um conjunto constituído por duas cartas impressas em duas folhas originalmente unidas. A primeira folha, mais estreita, apresenta esta vista da ilha da Madeira no terço superior, com o seguinte título “View of the City of Funchal and the South coast of the Island of Madeira, from Ponta de Cruz to the Brazen Head, taken from the Shipping in the Road”. Em abaixo, mostra um plano do ancoradouro do Funchal “Plan of the Road of Funchal”, com os pontos de referência da costa e indicações sobre o fundo do mar ao largo da enseada; inclui ainda uma série de observações “Observations on the road of Funchal and the isle of Madeira”, da autoria de Thomas Howe, em 1762, e comunicadas por Alexandre Dalrymble e ainda outras “General Observations on Anchoring” apresentadas pelo Capt. Kerr, em 1788.
A segunda folha integra um mapa da Ilha da Madeira com o título inscrito numa cartela “Geo-Hydrographic Survey of the Isle of Madeira, with Dezertas and Porto Santo Islands geometrically taken in the year of 1788”, realizado por William Johnston. Inclui ainda 3 registos diferentes. Sendo um deles, o superior, uma planta da cidade do Funchal “Plan of the Town of Funchal”, do Capt. Skinner, de 1775, e duas perspetivas da costa sul da Ilha, uma muito ampla, desde a “Ponta do Pargo à Ponta da Oliveira” (The Island of Madeira from Ponta do Pargo to Ponta da Oliveira” e a outra de “Machico ao Garajau” (The Island of Madeira from Machico to Brazen Head).
A Casa-Museu possui estas duas partes separadas, ambas impressas sobre seda. Trata-se de um interessante exemplo de uma compilação de informação sobre a Madeira, mais especificamente sobre o Funchal, que associa vistas, mapa, carta náutica, planta e notas de diversos autores e proveniências, num único documento editado originalmente por William Faden, em Londres, no ano de 1791, com a designação genérica de “Geo-Hydrographic Survey of the Isle of Madeira with the Dezertas and Porto Santo Islands (…)”.
AZUL CIANO é uma cor fria e juntamente com a magenta e o amarelo formam as três cores primárias essenciais, a partir das quais se obtêm outras.
O azul gera unanimidade nos nossos dias, é a cor favorita no mundo Ocidental. Mas nem sempre foi assim. Do Neolítico à Baixa Idade Média, a cor do céu e dos mares era alvo de desinteresse ou desconfiança. Com efeito, na Roma Antiga ter olhos azuis era quase uma deficiência; essa cor era associada aos bárbaros que a utilizavam para se pintar e assustar os adversários. Houve assim um longo caminho a percorrer, para a completa inversão desses valores.
O azul foi o primeiro pigmento artificial a ser criado, no terceiro milênio aC, no Antigo Egito era obtido através da mistura aquecida de calcário, areia e um mineral rico em cobre, como a azurite ou a malaquite, chamava-se azul egípcio. Era a cor associada à fertilidade e à proteção, sendo por isso usada nos amuletos das mulheres jovens, assim como nas pinturas de urnas e outros objetos fúnebres que acompanhavam os mortos na sua vida além-túmulo.
Antigamente a água raramente era azul, essa era a cor do céu e do ar, a passagem de verde para azul decorreu, lentamente, a partir do século 15 e a cartografia teve um papel primordial pela necessidade de assinalar a cor dos mares e dos rios, bem distinta dos verdes usados em terra.
O azul-claro assume várias designações como azul celeste, água-marinha e azul-bebé e esse é o tom escolhido, a partir do século 19, para a diferenciação de género nas crianças pequenas do sexo masculino. É a cor eleita dos românticos que a associam à nostalgia e melancolia. São precisamente a melancolia, a tristeza e o lamento, os sentimentos que definem o “Blues”. Historicamente este género musical surgiu, por volta de 1870, quando os escravos negros das fazendas de algodão, no sul dos Estados Unidos, criavam e cantavam melodias lentas e chorosas, que além de marcar o ritmo, mostravam a expressão de um povo desprezado, discriminado e sofrido.
É a cor da faculdade de Ciências e na Franco-maçonaria simboliza a sabedoria, lealdade e bondade. No casamento a noiva deve, entre outras tradições, usar algo azul-claro, a cor do amor fiel, o objetivo é atrair o sucesso e a felicidade à união. Não é uma cor muito comum na natureza, não abundam as flores azuis, nem mesmo no reino animal, no entanto algumas lagostas, caranguejos e polvos têm sangue azul por possuírem hemocianina, um pigmento respiratório rico em cobre que dá essa tonalidade.
Talvez por ser mais rara, é uma cor aristocrata a do “sangue azul” que identifica a origem nobre. Popularizou-se através do “denim”, tecido de algodão tingido de azul, usado pelos mineiros e operários, tornado hoje universal através dos jeans. É também a cor reconhecida por todos os que utilizam as redes sociais, o Facebook, o Twitter, o Tumblre e o LinkedIn, domina os seus logotipos, talvez porque inconscientemente esteja ligada à tecnologia e ao alívio do stress. Pelo contrário se tiver pressa no envio de uma encomenda não fique atrapalhado, “being blue” não é a solução, vá aos CTT e use o “correio azul”.
Nas nossas Coleções os azuis fazem-nos ir às nuvens ou ao mar, sobrevoando desenhos e aguarelas, mergulhando nas pinturas e na cerâmica.